A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, recentemente afirmou que “a censura é proibida constitucionalmente, mas também não se pode permitir que estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos”. Segundo ela, “soberano é o Brasil, soberano é o direito brasileiro”.
A frase, dita durante julgamento que reafirma o controle de conteúdo nas plataformas digitais, repercutiu — e não de forma positiva. A ministra, outrora reconhecida pela firme defesa da liberdade de expressão, parece agora relativizar o que antes julgava inegociável.
É legítimo perguntar: quando foi que Cármen Lúcia mudou tanto? E mais: em que momento ela passou a enxergar o povo brasileiro, os 213 milhões de cidadãos que sustentam com seus impostos o próprio Supremo, como uma ameaça à democracia? Como “tiranos”?
Não há muito tempo, em 6 de abril de 2018, a própria ministra foi alvo de um ato de hostilidade. Petistas protestaram contra a iminente prisão de Lula jogando tinta vermelha nas paredes do edifício onde ela residia, em Belo Horizonte/MG. À época, Cármen Lúcia se calou. Não chamou os manifestantes de “tiranos”, nem fez discursos contra o autoritarismo popular.
Por que agora generaliza todo o povo brasileiro como “pequenos tiranos”? Porque critica redes sociais, mas silenciou quando os ataques reais, de "corpo presente", vieram de militantes de esquerda, ligados ao partido que indicou seu nome ao STF?
Se o protesto com tinta foi um “ato democrático”, o que seriam críticas nas redes? Crime? Ódio? Tiranias virtuais? A ministra adota pesos diferentes conforme a origem ideológica dos críticos?
Ao citar a ágora grega, a ministra talvez tenha se esquecido de que lá, o espaço era público, o debate era livre, e o confronto de ideias era valorizado - mesmo que barulhento e imperfeito. Na Grécia antiga, a parrésia, ou liberdade de dizer tudo, era um pilar da democracia, inclusive com o direito de criticar o próprio sistema político.
Se hoje o povo brasileiro se manifesta - às vezes com dureza, sim - nas redes, é porque já não encontra canais institucionais de escuta, nem representação política verdadeira. E se a resposta do Supremo é censura ou repressão disfarçada de “regulação”, o risco de deslegitimar a democracia é real.
A ministra também falou em buscar um “pingo de sossego”. Mas democracia de verdade não oferece sossego. Oferece barulho, divergência, conflitos de opinião. “Sossego” demais, vindo de cima, pode significar apenas uma coisa: silêncio forçado, o tipo de paz que reina nos "Campos Santos".
Hoje, a imagem do STF perante o povo é a pior possível. Pesquisa Datafolha revela que 58% dos brasileiros têm vergonha da Corte Suprema. Mesmo entre petistas, quase 4 em cada 10 compartilham esse sentimento.
Não é à toa. Afinal, é esse mesmo Supremo que anulou as condenações de Lula, ignorando provas e processos regulares. É o mesmo Supremo que se move para prender Bolsonaro, enquanto fecha os olhos para escândalos do governo atual. É o mesmo Supremo que se imagina como último bastião da civilização, mesmo isolado da sociedade que deveria servir. É um escárnio.
Relativizar a censura é sempre perigoso. Disfarçá-la com palavras bonitas ou com retórica jurídica só a torna mais insidiosa. Não há democracia possível quando o povo não pode falar - mesmo que fale alto, mesmo que fale errado ou aos 'berros'.
Quando a ministra afirma que o Brasil seria um país de tiranos se não fosse o Supremo, ela não só insulta a população, mas coloca a Corte num pedestal de autorreferência e impunidade. Um lugar onde a autocrítica não entra, mas o autoritarismo disfarçado de jurisprudência se acomoda.
A pergunta que fica é: se os 213 milhões de brasileiros são tiranos, quem então seriam os verdadeiros democratas? Os onze senhores e senhoras togados?
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