O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para responsabilizar as plataformas digitais pelos conteúdos publicados por seus usuários. A decisão, que tem sido apresentada como uma resposta firme contra crimes virtuais, desinformação e discurso de ódio, esconde um subtexto preocupante: o avanço sorrateiro da censura sob o manto do combate à impunidade digital.
Até esta quarta-feira (11), o placar estava em 6 a 1 a favor da responsabilização direta das big techs, como Google, Meta e X (antigo Twitter). A mudança de entendimento representa um rompimento com o Marco Civil da Internet, que desde 2014 estabelece que as plataformas só podem ser responsabilizadas se, após uma ordem judicial, não removerem conteúdo ofensivo.
Mas agora, com o novo posicionamento da Corte, não será mais necessária a mediação de um juiz para que conteúdos sejam derrubados - bastará uma notificação ou, em casos “manifesta e evidentemente ilícitos”, o julgamento subjetivo da própria empresa.
Liberdade na UTI
A justificativa é sedutora: conter crimes que se espalham como pólvora nas redes. Casos de racismo, apologia à violência, pornografia infantil, fake news, ataques à democracia - todos reais, graves e que exigem ação urgente. O problema é o método.
A decisão do STF transforma empresas privadas em juízas da verdade, com poder de decidir, sem processo legal, o que pode ou não circular na internet brasileira. E mais grave: abre espaço para que conteúdos legítimos, críticos ou dissidentes sejam removidos com base em critérios vagos, interesses comerciais ou pressão política.
O preço da pressa
A medida chega sem que o Congresso tenha discutido profundamente o tema. O PL das Fake News (2630/2020), que propõe uma regulação democrática das redes, está travado. Nesse vácuo, o STF se posiciona como legislador informal e aplica, na prática, uma nova política de moderação sem debate público, sem regulação clara e sem o devido contraditório.
“O Marco Civil virou um véu de irresponsabilidade”, disse o ministro Gilmar Mendes em seu voto. Mas o que se coloca em seu lugar é uma névoa de insegurança jurídica - um território opaco onde as regras mudam conforme o vento político e os algoritmos operam no escuro.
Do combate à desinformação ao risco do autoritarismo digital
O objetivo declarado é nobre: frear a indústria do ódio e da mentira. Mas o efeito colateral pode ser devastador: inibir o debate público, silenciar vozes independentes e concentrar ainda mais poder nas mãos de poucos - juízes e executivos de tecnologia.
Afinal, quem define o que é “manifestamente ilícito”? Um meme crítico? Uma denúncia? Uma sátira política? Um texto provocativo?
Em regimes autoritários, a censura raramente chega de forma escancarada. Ela se infiltra em decisões técnicas, judicializações sutis, remoções “automatizadas” - tudo em nome do bem comum.
A quem interessa esse novo modelo?
Responsabilizar as plataformas é necessário - mas dentro de um modelo transparente, com critérios definidos por lei e sob controle democrático. A pressa do STF pode até proteger o presente, mas compromete o futuro da liberdade de expressão no país.
É preciso escolher: queremos uma internet regulada com equilíbrio e responsabilidade - ou uma internet policiada, onde a crítica é removida antes que alguém questione?
Por enquanto, o STF fez sua escolha. Mas o Brasil ainda precisa fazer a sua.
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