Se o ex-embaixador brasileiro, Carlos Alves de Souza Filho estivesse vivo hoje, talvez repetisse sua famosa frase, mas com uma vírgula de exasperação a mais:
“Le Brésil, Edgar, n’est vraiment pas un pays sérieux…" (O Brasil, Edgar, realmente não é um país sério).
E quanto a Charles de Gaulle, se de fato nunca a disse, talvez hoje o general francês, ao ver a cena institucional brasileira, fizesse uma pausa dramática, olhasse para o horizonte com seu ar solene e murmurasse algo como:
“Cela dépasse l’entendement” (Isso ultrapassa o entendimento).
Porque realmente - o que se vê hoje no Brasil é algo que desafia não só o entendimento, mas o senso de justiça, de proporção e de vergonha.
A decisão do ministro Alexandre de Moraes de conceder prisão domiciliar ao acusado de mandar matar Marielle Franco - um crime político que chocou o país e o mundo - parece mais um roteiro saído de alguma distopia tropical. Um dos mandantes, segundo denúncia aceita pelo STF, vai cumprir “pena” em casa, com tornozeleira, alegando “alto risco cardiovascular”.
A pergunta que não quer calar é: desde quando doença grave é salvo-conduto para assassinos políticos?
Moraes não apenas contrariou parecer da Procuradoria-Geral da República, que foi contra a prisão domiciliar, como o fez em silêncio ensurdecedor da própria esquerda institucional, da base de apoio ao governo, e - talvez mais gritante - dos movimentos que sempre disseram falar por Marielle.
O partido que por anos ergueu a bandeira do “Quem mandou matar Marielle?” agora se cala diante da decisão do ministro que manda o mandante para casa.
Cadê o discurso inflamado? Cadê a cobrança por justiça? Cadê o desconforto?
A suspeita que paira é cruel, mas inevitável:
Será que a indignação sempre teve lado? Será que Marielle foi transformada em símbolo apenas quando servia a certos fins políticos?
E as feministas da “sororidade interseccional antirracista democrática revolucionária”?
Nada a dizer sobre um assassino de uma mulher negra, periférica, lésbica e eleita, estar agora em casa, com televisão, piscina e cuidados médicos de excelência? Se fosse Bolsonaro o responsável pela liberação, já teriam feito passeata até em Genebra.
Nem uma linha do presidente. Nenhuma palavra de solidariedade. Nenhuma manifestação de incômodo com a decisão de Moraes.
Por que o silêncio? Por cálculo político? Por conveniência? Por medo de bater de frente com um STF que hoje é sócio do governo em várias decisões estratégicas?
O Supremo, que nos últimos anos tem se colocado como defensor da democracia, do Estado de Direito, da institucionalidade, agora tropeça em suas próprias decisões. Um tribunal que prende preventivamente por suspeita de golpe, mas libera o mandante de assassinato político com base num laudo médico, dá margem para o descrédito popular.
A montanha de contradições vai soterrando a confiança no Judiciário - e transformando o STF, especialmente na figura de Moraes, numa espécie de órgão legiferante e soberano, intocável, mas cada vez mais questionado.
No fim, se De Gaulle e Carlos Alves de Souza Filho vissem isso tudo, talvez se entreolhassem e concluíssem que o Brasil deixou de ser apenas um país não sério - e virou um país que perdeu o senso do ridículo, da justiça e da decência institucional.
Marielle virou estandarte, virou camiseta, virou slogan. Mas agora, com o corpo político de sua morte prestes a apodrecer no esquecimento seletivo da esquerda, a pergunta é outra:
Quem está enterrando Marielle de novo - e em nome de quê?
Porque justiça, definitivamente, não parece ser.
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