Não é exagero dizer que muitas decisões da Justiça brasileira, em todas as instâncias, mais causam perplexidade do que promovem equilíbrio. Em tempos de narrativas polarizadas, onde qualquer crítica à magistratura já é lida como ataque à democracia, é preciso coragem para apontar o óbvio: há algo profundamente errado com a balança da Justiça brasileira. E os exemplos recentes não deixam dúvidas.
Vamos aos fatos. O ministro Alexandre de Moraes, do STF, autorizou que Domingos Brazão, principal suspeito de ser o mandante da execução brutal da vereadora Marielle Franco, cumpra prisão domiciliar com tornozeleira. A decisão surpreendeu até os mais pragmáticos observadores da cena jurídica nacional. Afinal, estamos falando de um crime político que abalou o país e se arrasta sem solução definitiva desde 2018. Um suposto mandante, com influência e poder, “descansando” em casa enquanto as investigações seguem. É difícil engolir.
Enquanto isso, uma jovem cabeleireira foi condenada a mais de 14 anos de prisão por, segundo entendimento do Supremo, ter praticado um ato de “tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito”, ao pichar a frase “Perdeu, mané” com batom na estátua da Justiça. Não estamos falando de uma bomba caseira ou de uma invasão armada, mas de um protesto simbólico e isolado. Mesmo assim, a punição foi exemplar — ou melhor, seletiva.
Se isso já não fosse o suficiente para virar o estômago, a Justiça cearense decidiu que três acusados de decapitar uma mulher — crime que chocou Fortaleza e o país — não representam risco à ordem pública. O motivo do assassinato? Suposta ligação da vítima com uma facção rival. A brutalidade do crime é escancarada: a mulher foi amarrada, morta, decapitada e jogada na praia. Mesmo assim, os acusados, com ligação direta com o Comando Vermelho, estão soltos mediante medidas cautelares, como recolhimento noturno e tornozeleira eletrônica.
E o argumento do juiz? A ausência de elementos que indiquem que eles “comprometem a ordem pública”. Como se o ato de decapitar alguém não fosse, por si só, a mais clara ameaça possível à sociedade.
Esses casos escancaram uma justiça de dois pesos e duas medidas, que trata criminosos com histórico violento e ligação com o crime organizado com uma brandura desconcertante, enquanto pune com rigor quase simbólico atos de protesto, mesmo que polêmicos, vindos de cidadãos comuns.
E mais: há brasileiros presos há mais de dois anos por acamparem em frente a quartéis, muitos sem antecedentes, sem armas, sem violência. Onde está a proporcionalidade? Onde está a coerência?
As decisões descritas não são apenas controversas — são atentados ao bom senso jurídico e social. Geram descrença institucional e alimentam a percepção de que, no Brasil, a Justiça não é cega — é míope, seletiva e, por vezes, cúmplice do caos.
E a pergunta inevitável: o que é mais ameaçador à ordem pública — uma mulher assassinada e decapitada por uma facção, ou um protesto com batom em uma estátua?
Se a Justiça é a última trincheira da civilização, o que dizer de um país em que ela liberta decapitadores e prende manifestantes? Em que o mandante de um crime político vira morador monitorado de luxo, enquanto cidadãos comuns são tratados como terroristas?
É tempo de reacender o debate nacional sobre a responsabilização das decisões judiciais, sobre critérios objetivos de prisão preventiva e, principalmente, sobre o papel real das cortes superiores: proteger a Constituição — e não os interesses de momento.
Enquanto isso, a sociedade assiste, estarrecida, ao espetáculo da impunidade com toga e sentença.
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