Há algo de fora do lugar no mundo moderno. Ou, como costuma dizer uma amiga, “algo de errado não está certo”. Quando o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) - justamente o órgão responsável por zelar pelas garantias fundamentais dos cidadãos - se posiciona contra um projeto de anistia a manifestantes presos, é legítimo perguntar: que direitos humanos são esses que se prestam ao jogo da criminalização política?
A nota oficial, aprovada por unanimidade no colegiado, pede o arquivamento do projeto de lei que propõe anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023, alegando que a proposta “enfraquece a democracia”. Mas democracia é justamente o regime que garante o direito à manifestação, ao devido processo legal e ao julgamento justo. Quando essas premissas são substituídas por condenações sumárias e narrativas únicas, deixa-se de falar em Justiça e passa-se a tratar de controle.
Segundo o próprio CNDH, o projeto de anistia visa "beneficiar um grupo que promoveu política contrária à democracia". Ora, é exatamente por isso que o direito à manifestação existe - para permitir a expressão de posições divergentes, inclusive contra governos ou sistemas de poder. Criminalizar esse dissenso, sob o pretexto de proteger a democracia, é inverter completamente a lógica do Estado de Direito.
Sim, houve excessos no 8 de janeiro. Sim, a depredação do patrimônio público deve ser punida com o rigor da lei. Mas a grande maioria dos presos não participou diretamente da destruição, e muitos foram detidos sem flagrante, sem prova, sem julgamento - e continuam encarcerados até hoje, mais de dois anos depois. São mães, idosos, trabalhadores comuns. Gente que estava na porta de quartéis, com bíblia na mão e bandeira nas costas, e que não desceu para o quebra-quebra.
Colocar essas pessoas na mesma cesta dos que quebraram vidraças ou invadiram plenários é um erro moral, jurídico e histórico.
A posição do Conselho, longe de ser técnica ou imparcial, soa como uma repetição de narrativas oficiais, reforçando a subserviência a um governo que se diz defensor da democracia, mas ignora o clamor por justiça de quem pensa diferente. O CNDH, ao rejeitar de antemão qualquer proposta de anistia, abandona o seu papel de guardião dos direitos fundamentais e se transforma em fiador de um viés persecutório.
Se há algo que o Artigo 5º da Constituição de 1988 nos ensina, é que todos têm direito à liberdade de expressão, de reunião e de manifestação pacífica. A democracia se fortalece com pluralidade e tolerância, não com vingança política.
O próprio surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, decorre do trauma da Segunda Guerra Mundial, quando regimes autoritários eliminaram o direito à divergência. Anistias políticas foram essenciais em processos de redemocratização mundo afora, inclusive no Brasil - tanto em 1945 quanto em 1979. Foram passos necessários para reconciliar sociedades fraturadas e permitir a reconstrução nacional.
Negar esse instrumento agora, como faz o CNDH, é esquecer que os direitos humanos nasceram exatamente para proteger o indivíduo contra o abuso do Estado. Um colegiado que não enxerga isso perde a legitimidade de seu nome.
O debate sobre anistia não pode ser conduzido com rancor, nem com revanchismo. O Brasil precisa de serenidade institucional, de maturidade política e de uma Justiça que saiba diferenciar o joio do trigo. Manifestações pacíficas não são crimes. Críticas ao governo não são ataques à democracia.
E enquanto houver pessoas presas preventivamente, sem provas claras de participação em atos violentos, a sociedade terá o dever moral de exigir respostas - não apenas do Judiciário, mas também daqueles que dizem falar em nome dos direitos humanos.
Porque quando os que deveriam proteger o cidadão se aliam aos que o perseguem, a democracia já começou a falhar.
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