Prosseguindo com à nossa série sobre os grandes juristas brasileiros, homens que contribuíram para as ciências jurídicas e para o crescimento do Brasil como nação civilizada. Hoje abrimos espaço para a maior representação piauiense de todos os tempos na área do Direito: Evandro Lins e Silva. Disse o 'senhor habeas corpus', "Minha maior glória seria morrer aqui, no Tribunal do Júri". Ele não foi grande só no Piauí e foi referência, também, no mundo. Poucos operadores do Direito no Brasil brilharam como ele brilhou.
Evandro Cavalcanti Lins e Silva foi um daqueles juristas que pareciam ter nascido com a Constituição debaixo do braço e um habeas corpus no bolso. Mais que um criminalista brilhante, ele foi uma das vozes mais afinadas (e valentes) do Direito brasileiro em defesa da liberdade, da dignidade humana e da justiça - essa senhora cega, mas que Evandro fez questão de ensinar a enxergar com lucidez, humor e coragem.
Nas trincheiras do Tribunal do Júri, onde muitos tremem e tropeçam nas palavras, ele transformou a defesa em espetáculo da razão. Foi dele a ideia - revolucionária à época - de entregar aos jurados um memorial com os principais argumentos da causa. Sim, foi ele que decidiu que convencer não era só falar bem, mas também escrever melhor ainda. E escrevia como poucos.
Tinha horror a acusar. Dizia que, se tivesse que ser promotor, preferia abandonar o Direito e virar padeiro. Acusação era para quem dormia tranquilo mesmo com inocente na cadeia. Evandro, ao contrário, carregava cada caso como um combate pessoal à injustiça. “Criminalista se faz é na trincheira”, dizia. E ele não só dizia - fazia. E como fazia.
Nos tempos duros do Estado Novo e depois sob o tacão do regime militar, Evandro não se encolheu. Nos anos 1940, defendeu mais de mil presos políticos gratuitamente. Mil. Isso mesmo. Um batalhão de perseguidos políticos que teve nele o seu escudo. E não parou por aí. Quando virou ministro do Supremo Tribunal Federal, em 1963, continuou distribuindo habeas corpus como se fossem balas em festa de criança. Resultado? Caiu na mira da ditadura. Em 1969, foi aposentado compulsoriamente pelos militares, junto com os colegas Hermes Lima e Victor Nunes Leal, num dos atos mais vergonhosos da história da República.
Mas Evandro não se calou. Voltou à advocacia e seguiu fazendo história. No caso Doca Street (assassino da socialite Ângela Diniz, com quem namorava há quatro meses, morta com um tiro na nuca e três na face), por exemplo, defendeu o acusado e jurou que aquele seria seu último júri. Mas promessas, como sabemos, não são cláusulas pétreas. Anos depois, aos 88, lá estava ele de novo no tribunal, defendendo o líder do MST, José Rainha Júnior, acusado de homicídio.
"Minha maior glória seria morrer aqui, no Tribunal do Júri", afirmou o advogado Evandro Lins e Silva, durante o julgamento.
“Agora sim, é meu último júri”, disse o jurista. E foi.
Evandro também era da pena - e não só no processo. Escreveu livros como A Defesa tem a Palavra e O Salão dos Passos Perdidos, sempre com elegância e humor afiado. Ingressou na Academia Brasileira de Letras em 1998, coroando uma vida dedicada à palavra, seja no papel timbrado ou nas sessões do tribunal.
E como todo bom contador de histórias (e causos jurídicos), também foi jornalista, professor, ministro da Casa Civil, ministro das Relações Exteriores e procurador-geral da República. Só faltou mesmo virar personagem de Machado de Assis - embora ele próprio, por sua vivacidade, já parecesse saído de um conto realista com tintas de ironia fina.
No fim das contas, Evandro foi o advogado que não se vendeu, o jurista que não se curvou, o intelectual que não se escondeu. Lutou com palavras, com ideias, com o brilho da inteligência e a obstinação da ética.
Ah, sim, para os que gostam de detalhes mais biográficos: nasceu em Parnaíba, no litoral do Piauí, em 18 de janeiro de 1912. Formou-se em Direito no Rio de Janeiro, a então capital federal, em 1932 e faleceu em 17 de dezembro de 2002, aos 90 anos, depois de escorregar em no aeroporto Santos Dumont -, o tipo de fim que só poderia acontecer com alguém que viveu numa eterna corrida contra as injustiças e os tropeços da história.
Evandro Lins e Silva não foi apenas um nome do Direito. Foi, e segue sendo, uma aula viva - daquelas que a gente não encontra nos livros, mas nas consciências inquietas que ele ajudou a formar.
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