Paris já foi o símbolo do esplendor. Da “Belle Époque” - aquele intervalo mágico entre guerras, onde o progresso tecnológico e artístico europeu parecia eterno - sobraram apenas ruínas simbólicas. O tempo em que se andava pelas margens do Sena com um livro em mãos e a cabeça nas nuvens virou peça de museu. A capital francesa hoje é outra: frenética, desigual, brutal.
Quem diz isso não é um turista nostálgico, mas o jornalista, escritor e poeta Fábio Kerouac (nome literário de Fábio Almeida), um florianense radicado há mais de 20 anos em Hamburgo, na Alemanha. Ele foi ver Paris de perto - não a dos cartões-postais, mas a dos becos, dos camelôs, dos carteiristas e das periferias multiétnicas onde a Cidade Luz perde o brilho. E transformou essa experiência em um livro provocador, que lança agora no Salipi, em Teresina: “Caramba, não é todo dia que se vem à Paris!”.
Estive com Fábio Kerouac, na noite deste domingo, 8 de junho, no Salipi. Foi um encontro marcante. Aliás, um reencontro depois de sete anos. "O Salipi é isso, um ponto de encontros e reencontros", destacou. "O Salipi tem essa capacidade de unir e reunir pessoas brilhantes, escritores da terra, do Brasil e de outro cantos do planeta", explica Kerouac.
Kerouac foi onde poucos vão. Hospedou-se em um hotel barato no 18º arrondissement, bairro famoso não pelos cafés charmosos, mas por ser considerado um dos mais perigosos da cidade. Lá, se misturou entre afrodescendentes, árabes e imigrantes do Magreb - não como intruso, mas como parte do quadro, ele próprio negro, com o olhar treinado de quem enxerga além da maquiagem urbana.
“Paris não é só a Torre Eiffel ou os Champs-Élysées”, escreve ele. “É também a decadente Chinatown francesa, o Boulevard Ornano com seus frangos a 3 euros e os camelôs amontoados sob as marquises. É o cheiro agridoce da pobreza urbana misturado à culinária árabe”. Uma Paris invisível aos olhos do turista-padrão, mas muito real para quem sobrevive nela.
“É melhor passar fome em Paris do que em Bangu?”, provocou-se Kerouac, ecoando uma frase de novela oitentista. A resposta talvez só Hemingway pudesse dar - ele que, faminto, escreveu sobre a miséria e a beleza da cidade em “Paris é uma Festa”. Mas o escritor brasileiro contemporâneo não precisou passar fome. Precisou, sim, de atenção redobrada para não ter a carteira furtada. “Os carteiristas são como ratos. Se multiplicam pelas ruas e estão em todo canto. Mas os filmes franceses nunca mostram isso”.
Kerouac não escapou de olhares atravessados, mas conseguiu circular com certa fluidez entre as camadas sociais e raciais da cidade. “Ser negro em Paris é também ser invisível e, ao mesmo tempo, suspeito. Mas no subúrbio, essa condição se torna comum. Fui tratado como igual”. E isso permitiu uma imersão rara - uma vivência crua, sincera, longe do romantismo parisiense vendido ao mundo.
A crítica implícita no relato de Kerouac é clara: a Paris de hoje é o espelho trincado de uma Europa que se perde entre sua história e sua crise. A abertura desordenada às migrações, a falência dos projetos de integração, a falência urbana e a violência crescente revelam um continente que não sabe mais o que fazer com sua própria identidade.
O que Kerouac oferece não é apenas uma crônica de viagem, mas um manifesto poético-sociológico: Paris não é mais o que era - e talvez nunca mais volte a ser. O glamour se dissolveu no caos. A Torre Eiffel ainda brilha, mas agora sob a sombra do medo, da desigualdade e do desencanto.
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