A arqueóloga Niède Guidon faleceu na madrugada desta quarta-feira (4), aos 92 anos, em São Raimundo Nonato, no Extremo Sul do Piauí. A causa da morte foi falência múltipla dos órgãos, segundo nota divulgada pela Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), instituição criada por ela. A notícia abalou não só o meio científico, mas também a cultura brasileira, que perde uma de suas maiores defensoras do patrimônio arqueológico e ambiental.
Nascida em Jaú, no interior de São Paulo, em 12 de março de 1933, filha de pai francês e mãe brasileira, Niède teve dupla nacionalidade. Formou-se em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP) em 1959 e, logo depois, especializou-se em Arqueologia Pré-Histórica na renomada Universidade Paris-Sorbonne, na França, onde também concluiu seu doutorado, com uma tese sobre as pinturas rupestres de Várzea Grande, no Piauí.
Foi no sertão piauiense que a cientista encontrou o seu grande propósito: investigar, preservar e divulgar o riquíssimo patrimônio arqueológico do Parque Nacional da Serra da Capivara. A região, considerada um dos maiores sítios arqueológicos a céu aberto do mundo, abriga milhares de pinturas rupestres e vestígios de ocupações humanas com datações muito anteriores às hipóteses dominantes até então.
Niède Guidon foi uma figura disruptiva. Com base em escavações detalhadas na Serra da Capivara, ela sustentou, com coragem e evidências, a tese de que o povoamento das Américas poderia ter começado há mais de 50 mil anos — contrariando a teoria do “povoamento recente” (cerca de 12 mil anos). Suas afirmações enfrentaram ceticismo, resistência e polêmica dentro da comunidade científica, mas abriram caminho para uma revisão crítica e mais abrangente da história humana no continente.
Além das contribuições acadêmicas, Niède foi uma incansável ativista pela preservação ambiental e cultural. Fundou o Museu do Homem Americano e a FUMDHAM, instituições essenciais para garantir a continuidade dos trabalhos de pesquisa, educação e proteção do parque. Graças a sua atuação, a Serra da Capivara foi declarada Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO em 1991.
Niède Guidon não era apenas uma cientista de destaque. Ela foi uma mulher à frente de seu tempo, enfrentando a negligência do poder público, o descaso com a ciência e as dificuldades logísticas de trabalhar no sertão nordestino. Em meio a tudo isso, construiu laboratórios, museus, centros de pesquisa e até escolas em comunidades próximas ao parque. Lutou por décadas para manter viva a chama da ciência em uma região esquecida pelas autoridades.
Ela representava a ciência que dialoga com a cultura local, que forma profissionais dentro da própria comunidade e que transforma conhecimento em pertencimento. Comandava escavações, redigia artigos científicos e pressionava governos com a mesma energia. Sua figura era admirada por colegas no Brasil, na França e em todo o mundo.
Embora sua partida represente uma perda irreparável, o legado de Niède Guidon está longe de desaparecer. A FUMDHAM segue ativa, e os trabalhos de pesquisa e preservação continuam sob a liderança de colaboradores e discípulos formados por ela. No entanto, especialistas alertam para a necessidade de maior investimento e apoio público para que sua obra não sofra retrocessos.
O Parque Nacional da Serra da Capivara enfrenta há anos desafios orçamentários, insegurança e falta de infraestrutura. Niède costumava dizer que “um povo que não conhece seu passado não pode construir seu futuro”. Preservar a Serra da Capivara é, hoje, também honrar essa visão.
Niède Guidon foi mais do que uma arqueóloga. Foi cientista, gestora, militante, professora e visionária. Representou o compromisso inabalável com a ciência feita com paixão e propósito. Sua figura é a de uma mulher que cavou o chão da história para revelar as raízes mais profundas do Brasil.
Ela deixa como herança não apenas achados arqueológicos, mas um exemplo de coragem, resistência e amor pelo conhecimento. Seu nome ecoará eternamente nas pedras milenares que ajudou a decifrar — e no imaginário de um país que, apesar dos retrocessos, ainda pode encontrar no passado as chaves para um futuro melhor.
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