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Brasil MORRE UM MITO

Morre Niède Guidon aos 92 anos: a guardiã da pré-história brasileira

Arqueóloga reconhecida mundialmente, ela dedicou a vida à preservação da Serra da Capivara e revolucionou o entendimento sobre o povoamento das Américas; sua partida deixa um vácuo, mas também um legado científico e cultural imortal

04/06/2025 às 08h45 Atualizada em 04/06/2025 às 12h58
Por: Douglas Ferreira
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Niède Guidon a guardiã da pré-história brasileira - Foto: Reprodução
Niède Guidon a guardiã da pré-história brasileira - Foto: Reprodução

A arqueóloga Niède Guidon faleceu na madrugada desta quarta-feira (4), aos 92 anos, em São Raimundo Nonato, no Extremo Sul do Piauí. A causa da morte foi falência múltipla dos órgãos, segundo nota divulgada pela Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), instituição criada por ela. A notícia abalou não só o meio científico, mas também a cultura brasileira, que perde uma de suas maiores defensoras do patrimônio arqueológico e ambiental.

Quem foi Niède Guidon?

Nascida em Jaú, no interior de São Paulo, em 12 de março de 1933, filha de pai francês e mãe brasileira, Niède teve dupla nacionalidade. Formou-se em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP) em 1959 e, logo depois, especializou-se em Arqueologia Pré-Histórica na renomada Universidade Paris-Sorbonne, na França, onde também concluiu seu doutorado, com uma tese sobre as pinturas rupestres de Várzea Grande, no Piauí.

Foi no sertão piauiense que a cientista encontrou o seu grande propósito: investigar, preservar e divulgar o riquíssimo patrimônio arqueológico do Parque Nacional da Serra da Capivara. A região, considerada um dos maiores sítios arqueológicos a céu aberto do mundo, abriga milhares de pinturas rupestres e vestígios de ocupações humanas com datações muito anteriores às hipóteses dominantes até então.

O legado de Niède Guidon para a ciência brasileira e mundial

Niède Guidon foi uma figura disruptiva. Com base em escavações detalhadas na Serra da Capivara, ela sustentou, com coragem e evidências, a tese de que o povoamento das Américas poderia ter começado há mais de 50 mil anos — contrariando a teoria do “povoamento recente” (cerca de 12 mil anos). Suas afirmações enfrentaram ceticismo, resistência e polêmica dentro da comunidade científica, mas abriram caminho para uma revisão crítica e mais abrangente da história humana no continente.

Além das contribuições acadêmicas, Niède foi uma incansável ativista pela preservação ambiental e cultural. Fundou o Museu do Homem Americano e a FUMDHAM, instituições essenciais para garantir a continuidade dos trabalhos de pesquisa, educação e proteção do parque. Graças a sua atuação, a Serra da Capivara foi declarada Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO em 1991.

O que ela representou para o Brasil e para o mundo

Niède Guidon não era apenas uma cientista de destaque. Ela foi uma mulher à frente de seu tempo, enfrentando a negligência do poder público, o descaso com a ciência e as dificuldades logísticas de trabalhar no sertão nordestino. Em meio a tudo isso, construiu laboratórios, museus, centros de pesquisa e até escolas em comunidades próximas ao parque. Lutou por décadas para manter viva a chama da ciência em uma região esquecida pelas autoridades.

Ela representava a ciência que dialoga com a cultura local, que forma profissionais dentro da própria comunidade e que transforma conhecimento em pertencimento. Comandava escavações, redigia artigos científicos e pressionava governos com a mesma energia. Sua figura era admirada por colegas no Brasil, na França e em todo o mundo.

A morte de Niède Guidon ameaça a continuidade do seu trabalho?

Embora sua partida represente uma perda irreparável, o legado de Niède Guidon está longe de desaparecer. A FUMDHAM segue ativa, e os trabalhos de pesquisa e preservação continuam sob a liderança de colaboradores e discípulos formados por ela. No entanto, especialistas alertam para a necessidade de maior investimento e apoio público para que sua obra não sofra retrocessos.

O Parque Nacional da Serra da Capivara enfrenta há anos desafios orçamentários, insegurança e falta de infraestrutura. Niède costumava dizer que “um povo que não conhece seu passado não pode construir seu futuro”. Preservar a Serra da Capivara é, hoje, também honrar essa visão.

O que define Niède Guidon?

Niède Guidon foi mais do que uma arqueóloga. Foi cientista, gestora, militante, professora e visionária. Representou o compromisso inabalável com a ciência feita com paixão e propósito. Sua figura é a de uma mulher que cavou o chão da história para revelar as raízes mais profundas do Brasil.

Ela deixa como herança não apenas achados arqueológicos, mas um exemplo de coragem, resistência e amor pelo conhecimento. Seu nome ecoará eternamente nas pedras milenares que ajudou a decifrar — e no imaginário de um país que, apesar dos retrocessos, ainda pode encontrar no passado as chaves para um futuro melhor.

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