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Comportamento COMPULSÓRIA

Aposentadoria compulsória da major trans Lumen expõe rachaduras na PM de SC

Sob alegações de “comportamento incompatível”, governo catarinense aposenta única oficial trans da PM. Lumen denuncia interrupção injusta da carreira e levanta suspeitas de transfobia institucional

10/04/2025 às 13h30
Por: Douglas Ferreira
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“Queria continuar trabalhando”, relatou major após aposentadoria compulsoria – Foto: Reprodução
“Queria continuar trabalhando”, relatou major após aposentadoria compulsoria – Foto: Reprodução

A major da Polícia Militar de Santa Catarina, Lumen Muller Lohn, de 45 anos, foi aposentada compulsoriamente por decisão do governo estadual, publicada em edição extra do Diário Oficial no dia 4 de abril de 2025. A medida, que considera a oficial “não habilitada para o acesso em caráter definitivo”, ocorre após um processo interno conduzido pelo Conselho de Justificação da corporação. A justificativa formal: inconstância laboral e questões comportamentais.

Mas por trás das palavras técnicas e da fachada burocrática, o caso escancara uma trama mais complexa — e controversa. Lumen é a primeira oficial trans da PM catarinense, com mais de duas décadas de serviço, e vinha pleiteando progressão na carreira. Sua trajetória, no entanto, mudou drasticamente após iniciar sua transição de gênero em 2022, o mesmo ano em que teve, pela terceira vez, negado o pedido de promoção a tenente-coronel.

Uma carreira interrompida

“Eu queria continuar trabalhando. Já podia ter me aposentado por tempo de serviço, mas optei por seguir porque acreditava no meu potencial, no meu plano de carreira. Fui impedida no meio do caminho, sem uma justificativa real”, disse a major em entrevista ao ND Mais, visivelmente abalada.

Após um período de licença médica entre 2019 e 2022, motivado por um quadro de depressão, Lumen retornou ao serviço considerada apta pela junta médica da própria corporação. Foi designada à Diretoria de Saúde, onde permaneceu ativa durante todo o trâmite do processo que culminaria na sua aposentadoria compulsória.

Apesar da alegada “inconstância laboral”, a oficial afirma ter cumprido suas funções normalmente desde o retorno, o que põe em xeque os argumentos utilizados para afastá-la.

O peso da transição de gênero no processo

O ponto mais sensível — e não dito — é que a transição de gênero de Lumen parece ter funcionado como gatilho institucional. Antes da transição, seus pedidos de progressão eram negados sob justificativas administrativas. Após ela se assumir como mulher trans, a negativa veio acompanhada de um pedido formal para abertura de processo disciplinar e de justificação, que terminou com sua exclusão forçada.

O Conselho de Justificação foi composto por três oficiais homens, todos hierarquicamente superiores à major, e decidiu, com base em pareceres da Procuradoria-Geral do Estado, por sua “incompatibilidade para o serviço ativo”.

Diagnóstico de transtornos e a sutileza da patologização

Lumen tem diagnóstico de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e Transtorno Afetivo Bipolar, ambos em remissão. Embora esteja apta clinicamente, esses laudos foram usados como parte do embasamento para questionar sua “capacidade moral” — expressão usada no relatório do conselho.

A relação entre saúde mental e competência profissional é um tema delicado, mas no caso de Lumen, a menção aos transtornos parece reforçar uma tentativa de patologização de sua identidade e conduta, ignorando os pareceres médicos que garantiam sua aptidão funcional. “Não há qualquer fundamento técnico que justifique essa medida. O que existe aqui é uma clara tentativa de inviabilizar a minha existência dentro da corporação”, afirmou.

Governo nega discriminação, mas silêncio pesa

Em nota conjunta, a Polícia Militar e o Governo do Estado afirmaram que a decisão teve “base técnica e jurídica”, respaldada pela legislação vigente (art. 102, inciso VIII, do Estatuto dos Militares). Segundo o dispositivo, oficiais considerados “não habilitados para o acesso em caráter definitivo” devem ser transferidos para a reserva.

O que não se explica, porém, é por que a oficial, após mais de 20 anos de serviço e aptidão médica atestada, teria perdido repentinamente essa “capacidade de acesso”. Tampouco se esclarece por que a transição de gênero coincidia com o endurecimento do processo de justificação.

Nenhuma menção foi feita sobre a condição de Lumen como pessoa trans — nem para reconhecê-la, nem para refutá-la como fator do afastamento. O silêncio institucional, nesse caso, fala alto.

E agora, Lumen?

Apesar da consternação, Lumen não pretende se calar. Ela avalia recorrer judicialmente da decisão, com apoio de entidades de direitos humanos e coletivos LGBTQIA+. “Fui interrompida, mas não derrotada. Minha luta não termina aqui. Vou buscar justiça — não só por mim, mas por todas as pessoas trans que ainda sonham com um espaço digno dentro das instituições públicas”, afirmou.

O caso já começa a mobilizar setores da sociedade civil e deve ganhar repercussão nacional. Parlamentares de oposição, como a deputada Erika Hilton (PSOL-SP), já manifestaram solidariedade à major e pediram explicações formais ao governo catarinense.

Um caso que expõe a transfobia institucional

A aposentadoria compulsória de Lumen não pode ser lida isoladamente. Ela representa um possível caso de transfobia institucional, em um estado governado por forças conservadoras e com histórico de resistência à diversidade nas forças de segurança.

O uso de justificativas técnicas para afastar pessoas LGBTQIA+ de cargos públicos não é novidade. O que o caso da major Lumen evidencia é o quanto esses mecanismos, quando mal usados, podem funcionar como instrumentos de exclusão, travestidos de legalidade.

Mais do que uma disputa burocrática, está em jogo o direito de existir — e de servir — com dignidade.

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