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Polícia PROPINODUTO

Saiba como funcionava o 'contrato de propina' que desviava dinheiro público via emenda parlamentar no RS

De Norte a Sul, do país, um esquema que drena bilhões do dinheiro público que deveria ser usado na educação, saúde, obras sociais

13/02/2025 às 13h07 Atualizada em 13/02/2025 às 13h37
Por: Douglas Ferreira
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A PF encontrou R$ 140 mil com alvos da operação - Foto: Reprodução/Divulgação PF
A PF encontrou R$ 140 mil com alvos da operação - Foto: Reprodução/Divulgação PF

As emendas parlamentares, criadas para levar recursos públicos a quem mais precisa, tornaram-se um dos maiores ralos de corrupção do Brasil. O que deveria ser um mecanismo de desenvolvimento e justiça social virou um propinoduto institucionalizado, drenando bilhões de reais para esquemas fraudulentos. E isso acontece de Norte a Sul do Brasil, em todos os cantos do país, passando por Estados como Ceará, Maranhão, Sergipe e, agora, Rio Grande do Sul. A engrenagem da corrupção gira nos bastidores da política e parece não ter fim.

O caso mais recente expõe um escândalo digno de roteiro cinematográfico. No Rio Grande do Sul, a bandalheira chegou ao extremo com a elaboração de um verdadeiro "contrato da propina" para oficializar o roubo do dinheiro público. Sim, um contrato! O esquema de corrupção foi arquitetado por meio de uma empresa intermediária, que captava recursos via emendas parlamentares e ficava com 6% do valor desviado. A operação, revelada pela Polícia Federal, resultou em mandados de busca e apreensão, incluindo no Hospital Ana Nery, em Santa Cruz do Sul (RS), destino final das emendas parlamentares usadas no esquema.

O que choca não é apenas a audácia dos envolvidos, mas a normalização desse tipo de roubo. Como era possível assinar contratos de propina? Esses contratos eram de gaveta ou chegavam a ser registrados em cartório? Como funcionava o repasse do dinheiro sujo? Quem eram os parlamentares envolvidos? De que partidos? Quais prefeitos participavam do esquema? Quanto dinheiro foi desviado? As perguntas se acumulam, mas uma certeza já existe: a corrupção das emendas parlamentares se tornou uma praga nacional.

Como funcionava o esquema no Rio Grande do Sul

A investigação aponta que o esquema funcionava através do direcionamento de emendas parlamentares para o Hospital Ana Nery. Em troca, os envolvidos cobravam um percentual de propina sobre o valor repassado.

O lobista Cliver Fiegenbaum, dono da ACF Intermediações, é apontado como o principal operador do esquema. Sua empresa foi contratada pelo hospital para intermediar os repasses de emendas parlamentares e, como contrapartida, recebia um percentual de 6% do valor transferido. O dinheiro, que deveria fortalecer a saúde pública, era desviado para os bolsos dos corruptos.

O contrato da propina

Diferente de outros esquemas que funcionam na obscuridade, esse caso apresenta um detalhe assombroso: os desvios eram formalizados em contratos. O documento estabelecia que a empresa de intermediação receberia um percentual fixo sobre o valor das emendas destinadas ao hospital.

Segundo a cláusula do contrato, "em contrapartida aos serviços prestados, o Contratado receberá 6% sobre o valor por ele comprovadamente captado, pagos em até 30 dias após o recebimento do valor pela Contratante". Esse pagamento era feito mediante apresentação de nota fiscal.

Os alvos das buscas e o rastro do dinheiro

A Polícia Federal, com autorização do ministro Flávio Dino, cumpriu mandados de busca e apreensão em 13 endereços, incluindo residências e escritórios dos investigados. Entre os alvos está o chefe de gabinete do deputado Afonso Motta (PDT-RS), suspeito de envolvimento no esquema.

Durante as buscas, foram apreendidos R$ 160 mil em dinheiro vivo com suspeitos, além de telefones celulares escondidos no forro de um dos cômodos. A investigação ainda revelou que o hospital emitiu três notas fiscais para a empresa de Cliver Fiegenbaum, somando mais de meio milhão de reais em pagamentos pela "captação de emendas".

A estrutura de uma organização criminosa

A decisão judicial que autorizou a operação descreve a existência de uma organização criminosa articulada para desviar recursos públicos. O grupo direcionava emendas parlamentares e ficava com parte dos valores destinados ao hospital.

O dinheiro desviado pelo esquema poderia ter sido usado para salvar vidas, comprar equipamentos, pagar profissionais da saúde e melhorar a estrutura hospitalar. No entanto, foi parar nos bolsos de lobistas e políticos inescrupulosos.

A corrupção das emendas: um problema sistêmico

O caso do Rio Grande do Sul não é isolado. Somente nos últimos meses, investigações revelaram esquemas semelhantes no Ceará, Maranhão e Sergipe, envolvendo deputados federais e estaduais. Os nomes se repetem, os partidos variam, mas o modus operandi é sempre o mesmo: emendas destinadas a projetos sociais e de infraestrutura são desviadas através de empresas intermediárias ou "instituições amigas".

Os recursos que deveriam impulsionar o desenvolvimento do país terminam financiando a corrupção, alimentando um ciclo de impunidade e desvio de dinheiro público. E os responsáveis, na maioria das vezes, saem impunes ou continuam exercendo seus mandatos como se nada tivesse acontecido.

A hora de dar um basta

Enquanto a corrupção continuar sendo tratada como um "problema pontual", sem consequências reais para os envolvidos, o Brasil continuará sendo refém dos esquemas de desvio de dinheiro público. O caso do "contrato da propina" no Rio Grande do Sul é um alerta: se até a corrupção está sendo formalizada, o sistema está podre até o osso.

O fim do combate à corrupção: prisões da Polícia Federal despencam 80% em seis anos

A corrupção no Brasil segue impune a passos largos. Nos últimos seis anos, as prisões realizadas pela Polícia Federal por crimes dessa natureza despencaram quase 80%. Em 2019, 607 mandados de prisão foram cumpridos; já em 2022, esse número caiu para apenas 136. O ano com menos detenções foi 2022, com pífias 94 prisões, evidenciando o desmonte sistemático do combate à corrupção.

A derrocada das investigações não aconteceu por acaso. Coincide com o fim da Operação Lava Jato, minada pelo próprio sistema que deveria fortalecê-la, e com mudanças promovidas pelo Judiciário e pelo Legislativo que dificultam a prisão de corruptos. Em 2020, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) restringindo prisões preventivas praticamente selou o destino de operações que combatiam esquemas bilionários de desvio de dinheiro público.

O contraste é evidente: em 2020, a Operação S.O.S prendeu 73 pessoas envolvidas em desvios na saúde pública do Pará. Hoje, com as novas regras e um sistema que favorece a impunidade, ações desse porte se tornaram raridade. A corrupção não diminuiu - apenas ficou mais segura para seus operadores.

Cabe à sociedade cobrar investigações rigorosas, punição exemplar para os envolvidos e um fim definitivo para o propinoduto das emendas parlamentares. O Brasil precisa virar essa página.

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