A recente decisão da Unicamp de instituir cotas específicas para pessoas trans, travestis e não-binárias, aprovada com entusiasmo quase litúrgico por seu Conselho Universitário, marca mais um capítulo da guinada identitária que tem tomado conta das universidades brasileiras. Embalada pelo vocabulário do reconhecimento, da reparação e da diversidade, a medida, embora bem-intencionada, escorrega perigosamente para um terreno onde a ideia de justiça social se confunde com militância de grupo — e onde o critério do mérito e da igualdade real de oportunidades é deixado em segundo plano.
A Constituição Federal consagra a igualdade como um dos pilares da ordem democrática, permitindo ações afirmativas como forma de corrigir desigualdades estruturais. No entanto, essa previsão não é um cheque em branco para políticas baseadas em recortes subjetivos, como identidade de gênero ou orientação sexual. O critério adequado e verdadeiramente democrático para políticas compensatórias é o socioeconômico — ou seja, as condições materiais reais de vida do indivíduo.
Ao adotar cotas para pessoas trans, a Unicamp parte do pressuposto de que a identidade de gênero, por si só, é uma condição objetiva de exclusão. Isso ignora o fato de que há pessoas trans em situações privilegiadas e pessoas cisgênero em extrema vulnerabilidade. A desigualdade mais gritante no Brasil continua sendo a de classe social, e não identidade.
A exigência de um "relato de vida" para comprovar a condição de pessoa trans — além de flertar com a institucionalização da exposição íntima — escancara a fragilidade desse tipo de critério. Como avaliar, de forma objetiva, a "intensidade" de uma trajetória de transição? Que limites éticos são ultrapassados quando o sofrimento vira instrumento de seleção?
Pior: ao reservar vagas exclusivas com base em identidade autodeclarada e critérios subjetivos, a universidade rompe com o princípio republicano da isonomia. Isso cria uma nova forma de privilégio institucionalizado, onde o pertencimento a um grupo identitário passa a valer mais do que o desempenho acadêmico ou a real vulnerabilidade social.
A ação afirmativa, por definição, é uma medida excepcional e transitória, voltada para corrigir injustiças históricas evidentes e documentadas. O STF já reconheceu sua validade — mas dentro de parâmetros razoáveis. Expandir cotas para grupos cada vez mais específicos, com critérios cada vez mais subjetivos, transforma exceção em norma, gerando uma espécie de “concorrência por vitimização” que fragiliza o próprio conceito de justiça social.
Em vez de um sistema que favoreça os que mais precisam, temos agora um sistema que premia quem mais se encaixa em uma narrativa identitária.
O que falta ao debate é honestidade intelectual. Se o objetivo real é democratizar o acesso ao ensino superior, a única base legítima para isso é a cota social, que considera a renda, a escolaridade familiar, a região de origem e o acesso prévio à educação de qualidade. Esses são os fatores que realmente limitam o desempenho e as chances de ingresso no ensino superior — para todos, trans ou não, brancos ou negros, homens ou mulheres.
Cotas identitárias, por outro lado, operam em uma lógica de segmentação que mais exclui do que inclui: elas deixam de lado milhões de brasileiros pobres que não se enquadram em categorias protegidas, mas enfrentam as mesmas ou piores barreiras ao acesso educacional.
A decisão da Unicamp é simbólica, mas equivocada. Em vez de ser um exemplo de vanguarda, é um sintoma de como a universidade pública brasileira se distancia da realidade concreta da desigualdade social no país. A justiça social não pode ser construída com base em categorias abstratas e subjetivas. Ela exige critérios claros, objetivos e, acima de tudo, universais.
O que o Brasil precisa não são cotas para quem se identifica com uma determinada sigla, mas sim igualdade real de oportunidades para todos — e isso só será possível com uma política pública centrada na pobreza, na exclusão material e na educação básica de qualidade.
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